Falo para fora, escrevo mesmo é para dentro.
As cortinas outrora azuis balançavam, o frescor do vento
chegava em minha pele sem pedir licença, sei, aprendi pouco a manter descrições
imunes. Não tem como falar de uma coisa
sem mencionar as sensações da coisa. Ainda te vejo de costas, desembalando a carteira
de cigarro, atento aos carros e
inclinando tua mão esquerda pra me puxar. Esquecia-te que eu era a canhota. Jurei
sentir ódio de ti muitas vezes. Não consegui em nenhuma delas. O tapa na cara
foi forte, admito. Talvez eu precisasse acordar. Muitas vezes acordo e tenho a
sensação de inverdade, não de inconformismo, mas uma sensação que de tão distante
da realidade se torna absurda. És tu absurdo. Quase que te nomeio de outra
coisa. Não pareces o que aparentava ser. Assim são as criaturas humanas, quase
nunca são o que aparentam. Pensei estar equivocada o tempo inteiro. Eu nunca
estive. O eremita sem rosto que aparece
na hora turva ainda tem voz dentro de mim. Sou toda ouvidos quando o tato
morre. Cabeça é gaveta. Mente é aroma. Não consigo ainda te perdoar, mas
consigo te arremessar bem longe e sei, reúnes todas as forças afim de matar a
culpa na tentativa de ser feliz. Que culpa tens, logo tu, de apostar em voltar
a superfície? Tens sorte, por aqui não há botes. Desconfiei de quando estava a
me afogar, passaram dois ou três, deixei passar. Tenho eu essa mania infame de
engolir muita água. Gosto de cuspir depois. Sozinha. Entre garrafas e manhãs de
língua amarga. Entre lampejos de conexão com o oculto e a eterna busca por
respostas. Criança. A criança ainda está aqui. Mais curiosa do que triste.
Espelho é bom e fala. Poderia ser o meu lugar. Eu poderia tomar tais medidas.
Embora eu honre os advérbios que eu pronuncie durante a jornada, admito. Sou
cheia de pedaços reconstruídos. Há quem pronuncie Fênix, rio. Lembro de Luis:
És flor de mangue, suportas as torrenciais enquanto vê a tempestade. Quero acreditar que eu também seria capaz de tal relapso. Olho as
cartas e muitas vezes desejei rasgá-las. Não. Deixo que participe da biografia íntima
e imortal. Gosto de saber que tu me destes o golpe fatal que transformou o
antes e o agora em duas especificidades. Minha vida foi divida em dois
momentos. Quase enlouqueci. Oito meses se passaram e oito meses se passarão.
Nunca acreditei em destino, mas, acredito, carma tem. Olho as cortinas hoje e
recordo as direções do vento. Mente sob matéria. E no entanto é tão fácil ser
arrastado. Tu foste arrastado por ventos duros de assustar quem está em casa
só. Maldita é a minha língua, admito. Ando muito admitida, confessiva. Malditas
também foram tuas ações e nem por isso há ódio. Invento palavras mas todos
sabem, não invento histórias, é difícil literar para crianças. Não tenho tanta
criatividade. Tenho os olhos machucados e tenho visto inescrupulosos atos de
busca de felicidade. Estão todos urgentes de fechar as feridas em si, não
importam quais serão abertas no outro. Queria compreender a tua audácia de
entrar e sair colocando uma pedra para que ninguém mais passe. Ouço o velho
eremita novamente e quase suplico: Deixe que passem! Parece não existir ninguém
além de mim num oco dentro de um oco maior ainda. Tento a todo custo remover a
pedra que tu colocastes tão facilmente antes de deslumbrar-se na estrada. Essa
pedra que é tua, tu sabes o jeito de tirar. Não importa quão força eu tenha.
Ela conhece teus dedos e o teu querer. Ouço vozes que querem ajudar. Muitas
vezes perguntam se estou bem, se há distrações aqui dentro. Acabo rindo. O
velho olha na minha cara e ri também, somos os dois tramando dia e noite. Acho
divertido ter os olhos em cima dos meus. Ando vagarosa e de urgências só surgem
as mínimas vontades de fala. Incontáveis são os nomes que tentam inutilmente
remover a pedra. Não sabem que a total liberdade em estar perdida no oco do oco
me fere ao mesmo me alucina. Não quis lidar com nada além da dor. E além do
mais, sou levada a remover pesos sempre que há magia. Tenho os olhos úmidos.
Estou velha e impaciente por dentro. Desejo que todos passem, embora eu brinque
durante a estadia de cada um. Sempre que consigo sonhar o velho me bota de
frente contigo. Tua boca ri, mas teus olhos se perdem cada vez mais. E sabes
disso. Desafia tuas próprias leis. Leis que nunca foram criadas por ninguém. O
paraíso só tem poder pela existência do inferno, licença poética concedida. Acreditas
que existem barreiras a ultrapassar e mil coisas a conquistar. Também acredito. Minhas barreiras no caso são
as de dentro. Minhas conquistas estão dentro de uma rede no domingo de manhã.
Meu sossego é visceral. Pusera-me na roda da liberdade e desde então sei muito
mais o que não sou do que o que desejo ser. A noite é laboratório. As línguas e
todos os seus códigos são meus experimentos. Do muito que me oferecem, rio de
quase tudo. Longe de ser presunçosa me derreto com o acesso e o contexto e compreendo:
é fácil ser encantada. Quando compreendo tudo parece estar sem respostas,
porque as perguntas desaparecem. É assim porque é. As perspectivas, de dois
corpos que já estiveram conectados profundamente, ainda é diferente. Ser livre
é não aceitar tudo. Sei que a pedra conhece teus dedos, mas teus dedos não são
os únicos. Meu quadril largo é acostumado com espessuras. Descubro e comparo
forças. No fundo eu gosto de ter morrido. Nem pretendo juntar os meus pedaços.
Quero mesmo é experimentar todos os cortes e fazer dos dedos objetos de sutura.
De tudo que foi enterrado no silêncio, sobrevivo pela retórica intenção.