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A escrita sempre foi fiel. Os episódios aqui encontrados são batizados de Escarros pois os mesmos são expurgos íntimos e partos divinos diferencialmente temperados pelos versos e circunstâncias que os compõem. Muitas vezes escorrem coisas a todo o tempo sem controle, disso tiro a lição e arte que se eterniza, mesmo que a poucos olhos. O valor é da existência. -Se fosse objeto seria polaroid, cuspiria poesia.

domingo, 26 de março de 2017

DEVANEIO DE OLGA: CONTO DA EXPANSÃO PARIDO DO DESEQUILÍBRIO



Estávamos no carro de Lúcio quando olhei pra Charlotte e a vi mais linda que nunca.
- Liga esse som! Ela gritava com sua voz rouca de quem acabara de acordar em quase todas as suas respirações.
-Lúcio era o nosso amigo mais dócil, talvez por que sua mãe fosse sagitariana. Riu e levantou os óculos escorregados pela oleosidade da pele, com o indicador; Lúcio odiava o dedo do meio. Isso mostra muito sobre seu caráter. Ele não o usava nunca, exceto para passar as páginas do gibi do homem- aranha.
- Olga, no que você está pensando? Ouvi.
- Na casa de número 3686. Tu já vistes? Eu sempre quis entrar lá.
- Eu queria saber como é que começa esse teu raciocínio, isso sim.
Nós estávamos prestes a parar no trailler da cidade que nunca fecha, eu sempre carrego moedas por que as experiências do lugar onde morávamos era essa, carregar moedas, sempre.
- Vocês querem o quê?  - O garçom perguntou mexendo a caneta como se tivesse anotando, ansioso por começar a escrever o próximo pedido dos 47 que já tinha feito naquela noite. Um aperreio sem fim.
- Uma cerveja, por obséquio.
- Tu não cansas de beber?
- Tu não cansas de perguntar. Deixe-me. Você ao menos lembra da música que tocou no carro? - De certo, explicaria tudo.

Chegando em casa de passos lentos até a porta do banheiro lembrei-me do que Charlotte me disse sobre o deserto. Eu estava lá a tantos anos... como era mesmo a história? Rebusquei tirando a roupa.
Escutei a música mais uma vez e senti zumbidos. Estava tudo bem.
Abaixei-me na parede e senti grãos de areia nos espaços das minhas costas, pensei no spa que minha mãe frequentou há alguns anos e entendi porque esfoliação era eficaz. Deve ser, vou testar açúcar e mel na cara depois. O deserto.
"Quando você me ouvir cantar..." eu teria que dormir para que a voz de Gal saísse do corpo do meus ouvidos ou o quê?
-Você está  estão sublime com essa blusa de garçonete.
Maldição! Ele não tinha outro elogio pra fazer? É um complô? Inácio gostava de botões. Eu associava qualquer elogio que me fizessem aquela altura aos que Inácio me fazia por que eu no fundo gostava de não deixar Inácio  esquecido junto à romã guardada no travesseiro que Lázaro me deu pra espantar Inácio dos meus pensamentos. Otto pediu mais dinheiro pra salvar a minha cabeça e eu juro, caro amigo que está aí assistindo o declínio da sanidade humana, eu não tinha mais dinheiro. Gastei tudo na cama, ou melhor, no divã. Ao menos eu me sentia responsável, ao menos o analista me salvaria, ao menos eu poderia fingir que é normal ser louca.

-O que você quer ser quando você crescer?
- Louca.
- Criança, por que diz isso?
- Por que os loucos podem fazer tudo que querem.

A próxima mulher de Inácio verá meus brincos de bolinhas roxas debaixo da cama. O que não quer dizer nada, por que nessa hora ele vai olhar os brincos roxos e jogar fora com a mesma farsa que jogou fora os tampões que Maria lhe dera, como se não significassem nada, como se até hoje essa fosse a parte mais horrenda da minha história e que ironicamente eu não tenho nada a ver. Inácio tem cada mania, deve ser o Vênus. Eu já estava conformada por que não é que Inácio fosse o pior dos homens, Ele só era louco mesmo. A  sua ingenuidade que um dia me feriu tanto já me dava era inspiração. Eu sabia fingir tão bem que começava a amar aquela mulher que entrou em mim depois do capeta sair de voltar três vezes nas formas suntuosas por debaixo da minha saia. Que horror!
Eu aquela altura não fazia o que queria, era grandioso demais o meu querer. Morar em Itaparica com Inácio e criar Manoel, entrela...(você precisa se perdoar- Aly Cravo falava todo tempo na minha cabeça) çando nossas existências. Então por via desta regra, louca não fiquei, Entretanto eu sentia, ali, sentada no chão do banheiro, vendo rostos nos azulejos, sentindo o frio que faz nas paredes da casa de madrugada, uma imensa paz.Fui no fundo do baú colorido das roupas e lá vi às três Marias belas, fui mais a fundo e senti o gosto de cada uma, fui mais a fundo e senti o gosto dos dois, dois? Dos cinco. Não senti absolutamente nenhuma vontade de chorar. Não senti nada. Eu estava imune. A última gota de sangue foi derramada na guerra dos universos. Eu só estremecia quando lembrava da voz de Inácio se referindo a mim, contemplando a minha existência. Contemplando o encontro de dois, a menina sem rosto do sonho, o banheiro da casa da tia Lizandra, a pia da casa abandonada que me viu nua mais vezes que a minha própria mãe. Tudo rodopiava, Otto disse que seria normal ter devaneios no meio do tratamento e que era pra eu deixar escorrer tudo. Otto não tem noção do perigo. Eu precisava escutar os sussurros do espírito no deserto. Era isso! Era isso que Charlotte queria me dizer. Eu olhei para as unhas dos meus pés e vi o que o desequilíbrio das infiltrações da casa da esquina tinham feito na minha. Recordei a última sessão.

- A tábua de Esmeralda é o melhor cd de Jorge.
- Como se sente hoje?
Eu via os quadros do quarto de Otto, ele tinha muito bom gosto e gostava de viajar. Será que Otto se sentia tão vazio quanto eu? Não, claramente não. Ele já foi ao show do The Smiths, eu só estava ali por isso, Ou ele só tem muito dinheiro e coleciona momentos como se os vivesse de fato ou ele realmente imagina o que sinto mesmo sem a capacidade de sentir. Um Ser que escuta Morrissey, não no sentido sonoro, mas no sentido poético consegue um fiapo de esperança. Mas ando poupando tanto a minha energia que consigo até mimos diários que apelidam de acaso. Poder pessoal é uma maravilha.
- Me sinto melhor, comecei a meditar.
-Ah, é? Você fazia isso acompanhada de Inácio?
- Acho que ele queria que eu fosse assim, mas eu repugnava a ideia por besteira.
- Que tipo de besteira, Olga?
- Inácio vê beleza onde não tem. Eu iria encontrar o meu eu enquanto ele reparava e procurava valores nos mil tu's  que permanecem disciplinarmente mantendo seu contrato com a sociedade nesse vislumbre de eu não sei o que sou, então vou juntar tudo que "presta" e num passe, sou isso. Inácio acredita que as pessoas são aquilo ali. A ilusão dele ardia nos meus olhos.
- Porque você se separou de Camilo?
- Por que eu não sentia mais desejo sexual por ele.
- Você falou isso pra ele?
- Não lembro.
- Por que você broxou?
- Ele me amava demais. Ele poderia me amar muito, mas ele deixava isso claro demais, ele poderia colher uma flor ou ser mais homem como Inácio era, Inácio me amava e talvez por falar muito parecido com o meu jeito de falar eu o amava mais.
- Então dependência afetiva é broxante pra você, Olga? Temos que investigar o episódio dos seus oito anos.

Quase saí correndo quando lembrei da conclusão de Otto, mas não podia, aprendi a ter auto controle. Aly Cravo me ensinou tudo que sei. E tudo que sei me mantém mais de pé que as análises de Otto.
Otto não entenderia, Inácio olhava e ainda tinha a ousadia de me dizer por quê. Eu trabalho com as verdades sublimes, eu não trabalho com as verdades carnais, eu não sou açougueira. Somos todos sagrados e o amor nunca deveria ter sido pronunciado. Eu já estava exaltada, então respirei. Um belo dia acordei e os anos tinham passado. Onde andará o sentido? Me conformei quando entendi que a eterna busca é só sobre mim. Esse planetinha em desenvolvimento não tem capacidade para a grandiosidade do meu afeto. Fingir ajuda, pra alguma coisa serviu escutar tanta asneira. Eu tinha coletado muito ensinamento, aquela noite com Juan em volta da fogueira durou exatamente 485 dias. 485 dias numa noite e eu agora era a feiticeira de andar sereno, de cara pro vento, eu achava viver um lucro.
Findei a recordação. Desde que aprendi que somos todos sagrados ficou mais fácil não olhar o beco da rua de Inácio quando o metrô passa. Eu carrego o espelho e me cerco de resiliência. Deus poderia ter me dado um Vênus menos vulnerável aos vampiros. Eu tinha que me desesperar? Eu poderia estar celebrando a minha vida cantando vento de Maio e ser uma mulher que investe em outras coisas do que psicoterapia. Eu nem precisaria de psicoterapia. A não ser que meu Vênus mais uma vez fosse tão ridículo. Mas não, a brincadeira começou quando ele trocou vento de maio pelas àguas de março. Há promessa de vida no meu coração, sei.
O telefone tocou.

- Chegou bem? Disse Charlotte com o telefone em cima da cama enquanto tirava a roupa nova.
- Sim, estou.
- Está onde? Que eco é esse?
- Tô no banheiro.
- Tá fazendo o quê? O que está pensando?
- Estou pensando que devo levar incensos para harmonizar o apartamento de Otto na próxima sessão.
- Eu queria saber como é que começa esse teu raciocínio, isso sim.
- Entendi o que você me disse. Estou preocupada.
- Entendeu o quê?
- Quando você falou do deserto... foi sobre Moisés ou Jesus?
- Moisés.
- Então entendi certo.
- E por quê a preocupação?
- Por que não chorei, pela primeira vez eu vi de fora. Não senti nada.
-  Por isso é deserto, bobinha.  Depois te explico sobre Rebeca.
- Essa eu já sei.
- Então vá dormir.
- Tá bom, amanhã tenho meditação cedo com Cecília, beijo.
- Gostou mesmo desse negócio, hein?
- Eu gosto de salva vidas.
- Doida! te amo.

Passaram-se  27 minutos até que eu decidisse abrir o registro do chuveiro. Senti paz.