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A escrita sempre foi fiel. Os episódios aqui encontrados são batizados de Escarros pois os mesmos são expurgos íntimos e partos divinos diferencialmente temperados pelos versos e circunstâncias que os compõem. Muitas vezes escorrem coisas a todo o tempo sem controle, disso tiro a lição e arte que se eterniza, mesmo que a poucos olhos. O valor é da existência. -Se fosse objeto seria polaroid, cuspiria poesia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

VERBO DE LIGAÇÃO (Narrativa do esplendor cotidiano)

O piano bateu. Foi assim que vi você saindo da barbearia tirando os óculos atravessando a rua pra mim olhando pros cabelos de Júlia, qualquer coisa negra brilhando às dez da manhã lembrando que a minha saia estava suja e igual.  A janela fechou. Foi assim que vi você gesticulando qualquer assunto em comum com Laura lembrando que o meu silêncio ecoa nas tuas falácias, porque elas não existem para mim que já conheces.  O ferrolho desceu. Foi assim que Maria passou olhando de rabo de olho ajeitando a barra da saia deixando à mostra seu quase seio de quase mulher e seu quase jeito firme de ser fincando de pedra tua pupila; lembrando que não há mais nada de charme no meu cabelo desbotado.  A nuvem pesou. Foi assim que Berenice atravessou a rua com aquela bundinha redonda balançando e hipnotizando a nós dois e eu percebi tua fixação por três míseros segundos que se repetiram quatro vezes enquanto ela passeava na confeitaria lembrando que a minha bunda não balança e não tem formato, porque ela está ao seu lado ou atrás de você quase sempre. A ficha caiu. Foi assim que Ariana puxou teus olhos quando jogava sinuca no bar de Arnaldo que sempre perguntava o significado da  minha tatuagem e eu em silêncio ria amarelo lembrando que tu olhavas as tatuagens de Marte na nuca dela que te percebia só porque fazias questão de passar ao lado dela. O barco dissolveu. Foi assim que Elisse apareceu no cenário dos espíritos de véu lembrando que não há mais nenhum tipo de graça em não ter explorado a América, em não ser do mundo, e que o conceito de conhecimento adorável é artificial e não tenho tantas estórias para contar. O espelho embaçou. Foi assim que  Olga dormiu e a tecnologia dos dedos permitiu comunicação com o quase desconhecido lembrando que há  um perigo bem sutil que de tão evidente não é suspeito.  A garrafa quebrou . Foi assim que vi você acompanhando solene o riso de Lívia só porque ela tinha peitos grandes lembrando que eu também tinha mas eu não estava rindo, porque talvez  não fosse Lívia que estava rindo com Marcelo que beijou na orelha, porque eu estava seca.  A brisa ardeu. Foi assim que senti uma enorme  ânsia quando vi que você colecionava os pôsters de Mila atrás da porta cinco anos depois de sua morte lembrando que talvez eu precise partir. O trinco emperrou. Foi assim que vi seus olhos penetrando na blusa de renda de Rosa procurando algo que acabei lembrando que eu tinha mas troquei de blusa antes de sair para não parecer vulgar, no engano de sempre manter os meus olhos bem distantes dos teus quando estamos em bando, pois não sabes de modo algum disfarçar. O chão se abriu. Foi assim que  percebi que estava sem mãos pra chamar quem habitava agora em teu corpo lembrando que meu corpo já estava boiando em alto mar chegando não sei onde, porque já desistiu de nadar.  O mar chorou. Foi assim que Rúbia existiu e tirou o peso dos verbos. O silêncio ecoou. Foi assim que ouvi Íris falando do céu lembrando que eu era amante da natureza mas falava quase nada porque eu estava limitada a ser e desafiava o teu encanto pelo parecer. A roupa mudou. Foi assim que vi que prestavas atenção nas gurias de pescoço e lábio finos lembrando que eu havia passado batom pros semáforos.  A cama esvaziou. Foi assim que dormimos juntos pela quinquagésima sexta vez  no claro da televisão lembrando que quem ama dorme todos os dias da semana, mas só depois. O carnaval chegou. Foi assim que eu vi a tontura tomar de conta de um ser que não sabe o que procura e na hibridez do luto perde-se do que o cura lembrando que eu era bonita, mas não estava pintada de paraíso bélico , nem nua chamando a língua pra cintura. O passo não se estendeu. O sopro da existência divina apareceu lembrando que verbalizar é a arte de quem ainda não morreu.