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A escrita sempre foi fiel. Os episódios aqui encontrados são batizados de Escarros pois os mesmos são expurgos íntimos e partos divinos diferencialmente temperados pelos versos e circunstâncias que os compõem. Muitas vezes escorrem coisas a todo o tempo sem controle, disso tiro a lição e arte que se eterniza, mesmo que a poucos olhos. O valor é da existência. -Se fosse objeto seria polaroid, cuspiria poesia.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

PÓSTUMOS VALORES

Manoela estava sentada á direita do bonde. Os trilhos entorpeciam os seus ouvidos. Uma asa no céu pintava a nuvem. São todos tão equilibrados, menos o menino no colo da mãe loira de duas  tranças feitas pela raiz, na testa. o penteado de uma rainha no corpo da mulher pobre. Os olhares deles todos ali configurando a cidade estavam para além da nuvem de asa. Fui reparando banco a banco, como se pudesse ao menos prever a personalidade que chegaria no determinado ponto, na finalidade de absorver o cotidiano. Enxergo formas adquiridas pelo tempo. Comecei por Honório que tinha uma leve curvatura entre o lábio inferior e o queixo que faziam com que eu recordasse da curvatura de Mirla, busquei-a no portão da casa artesanal. Foi a última vez que a vi antes de borrar o batom na partida. Era o tipo de boca das pessoas observadoras que pareciam ter o olhar longe. A mulher sentada atrás,  de queixo á frente era cuidadosa, é assim que elas são mesmo que por vezes pareçam ranzinzas. Cecília lia algo desconfiada no banco á esquerda, e tinha as narinas abertas, as mulheres de narinas á mostra sempre escondem algo, mas nem sempre é prejudicial, ás vezes é sábio ser safo. Paula era a última da fileira e tinha cílios longos, era possível ver a chama branda de seu coração. Ali, atrás de todo mundo, Ernesto. O típico ser que teima em não fazer parte da sociedade e sente orgulho como se de forma alguma ou de forma muito especial na sua conjectura de si mesmo ele já não estivesse imerso em suas próprias ilusões. Qualquer um sabe da própria verdade se cavar a fundo, mas Ernesto já teria descoberto tantos eu's que só lhe restava sobreviver e fingir até se tornar a verdade. Talvez eu não confiasse em homens de boca fina por culpa de Basílio. Rosa era observada por seu quadrio vasto mas não haveria nada de mais sublime em seu rosto que as suas covinhas anunciando o aumento de seu quadril no meio século de vida. Renata fazia alguma costura para a sobrinha e tinha as maçãs acentuadas, quem carrega essa marca geralmente tende a apaziguar o futuro por ter tido total desconhecimento passado. Não falarei das bundas, não ainda. O filho da mãe loira ainda estava ali quando o reparei olhando para os lados e sua pupila pequenina aparentava delicadeza no espanto, vontade de fuga e conformismo. Ele estava destinado a viver á espreita mas certamente saberia correr. A viagem seguia tranquila com todas as demencias comportadas entre as lacunas de amparo. Eu não poderia lhes dizer aquela altura que estávamos seguindo rumo a coisa alguma. O sol daquela manhã não lhe fariam acreditar. Na curvatura do bonde  sorveteria aparecia, as navalhas na barbearia de Alceu trabalhavam na velocidade do relógio de Aristides que morava acima e fumava 3 cigarros a cada hora. A solidão da cidade caminhava de braços dados e eu era agarrada aos coretos da praça. Tudo ali morreria e as pessoas teatravam a imortalidade.

Devaneio de Olga: Confabulações noturnas com Ícaro.

Olga acabara de interpretar uma das estrelas do apartamento de Larissa quando resolveu perambular pela cidade. Resolveu se reaproximar da música de Arnaldo. Estava escutando a patrulha do espaço quando atentou a parar no bar mais calmo e próximo, ao menos analisava onde cabia e quase não cabia na cidade.
- Você está entendendo esse jogo de esfinges? Perguntou sentando ao lado da mesa de Ícaro num suborno a própria timidez.
- Estou. Não gosto nenhum pouco.
A superficialidade humana pedia um cigarro a Olga,  Ícaro carregava isqueiros.
- Podes sentar... aqui?
Olga já levantara.  No fundo o sol em áries lhe fazia saber a que veio.
A tortura da subjetividade estava na transmissão corporal. Ela gostava de reconhecimentos espirituais. Tocaram "cortesia" como ela pediu, e cá pra nós qualquer cantor quer calar a boca de quem muito pede ou fica feliz em não ter escutado "toca Raul" embora fosse uma das próximas.
-Você fala bonito.
- Eu só cantei.
- Você cantou fechando os olhos. Pensei que só eu fazia isso.
Janaína, que estava sempre perdida com cara de autonomia em pessoa parecia estar com ódio quando olhou o vocalista. Era olhar de mulher compenetrada, os olhos castanho avermelhados assim pelos finais das frases cantaroladas.
Às vezes o acaso permite o sorriso extremo...Gargalhada: espécie de riso aberto na boca de  quem muito já sofreu.
A quitanda da Santos Dumont a emocionava pois as árvores ainda não foram cortadas pelos fios dos postes,  conseguíamos ainda  ver o céu verde. Há uma incapacidade humana de ser feliz. Percebo isso quando Celecina tranca as portas de sua casa e não deixa uma lâmpada acesa sequer. Eu me torno feliz neste momento por que a visão de Celecina guarda os pássaros que nãaise pode quando só ela viu. O poder de ser guardado no olhar do ser vivo ultrapassa as paisagens. A significância se agarra ao significado. O céu chama.

- A escuridão também te atormentou?
-Por longos anos, Olga.
- A mim também. Mas... percebe as nuvens densas?
- E o que tem?
- As nuvens densas não te parecem nada?
- Geralmente desenhos.
- E as espalhadas?
- As espalhadas nada. Podes me dizer o que pensas?
- Quase ninguém quer saber.

Acendem um cigarro e se olham mais profundamente que no último natal.

-Bem, as nuvens densas tem sentido, tem forma. Não te parece chumbo?
- Não, eu acho bonito, parece peso de peito. Olga é um som bonito, aquele de livro pesado caindo na mesa.
- Eu não gosto do peso dessa nuvem, embora ache bonibo, eu gosto de ver o azul.
Ícaro mostrou os dentes por baixo dos olhos que ficavam logo abaixo das sobrancelhas mais protetoras que Olga já viu.
Acontece que a ilusão para Olga é como a nuvem em formato de qualquer coisa que fosse. Algo que impedia de ver. Que mostrava a superfície. Olga era a viajante em busca da fonte do ser: o afeto real.
As nuvens espalhadas mostram sem vergonhas o azul por toda parte, o espalhado até parece mar. De chumbo passa a ser fumaça solta. Solta.

Ainda é possível brincar com as nuvens. Manoel trouxe uma cerveja pros dois velhos conhecidos tímidos. Pois uma coisa há de ser bem certa, o céu não seria o  mesmos dali em diante.