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A escrita sempre foi fiel. Os episódios aqui encontrados são batizados de Escarros pois os mesmos são expurgos íntimos e partos divinos diferencialmente temperados pelos versos e circunstâncias que os compõem. Muitas vezes escorrem coisas a todo o tempo sem controle, disso tiro a lição e arte que se eterniza, mesmo que a poucos olhos. O valor é da existência. -Se fosse objeto seria polaroid, cuspiria poesia.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

DEVANEIO DE OLGA: QUANDO O BOLOR INVADIU A CASA.




Concluo que o declínio não tem o gosto gentil de ser amargo. Meu amigo partiu há dois anos em uma navegação que muito me parecia segura, e era. Ao encontrar seus pertences pela casa abstenho-me da visão. Vejo a roupa pendurada e, apesar do abandono, não consigo usá-la como pano de chão. Dizem-me as bocas aquáticas que o afago perdido mais fere que a liberdade sem resposta. O silencio ensurdece, sim, meu amigo. Quando não falas, cospe nos ponteiros, penetra-os em minha face como imortal, deixando-me a revolta da ingenuidade. Certa noite tive um pesadelo, segurei tua mão e beijei teus olhos, olhos insones, olhos de fome.Volto a varanda e admiro o alaranjado. Não és mistério, por mais que a boca que vos tenha falado seja doce, não és. És a tempestade prevista por mil raios soltos durante a estrada, eu que não vi. Acreditem no que quiserem. 
Meu corpo é velado pela lua e pelo sol. Ninguém sente a morte além do que tem os sonhos asfixiados e os carinhos jorrados numa fonte qualquer pelas bandas do centro, onde tem um samba iluminado por um clarão amarelo, deixando as peles bonitas. Volto a sentir a maldita sensação no nariz. Arde. Repouso a xícara e num rebobinar mental principio falha nos nervos. A mágoa corre solta no coração. Assim começo, pelo fim, pelo início tem graça mais não. Conceber a ideia da desesperança por consequência de uma cegueira insólita me arremata. 
Há em qualquer lugar  magia, na superfície a magia é gostosa, admito. Gosto da magia de sentir quenturas nas narinas, fricções na pele, olhos que se fundem na certeza do enlace para suportar a correnteza desta vida. És nó frágil que se quebra num sopro de deslumbre, deslumbras tudo. Faça como os grandes homens, enfie a estaca mor do esquecimento e deixe os escombros para os raios que me partam em mil. A certeza é de que o bolor invade a casa ao mesmo passo que as mãos me salvam. Vinte e um anjos percorrem meu corpo e com todo o o cuidado mostram-me a vida, o céu, ainda que minhas pernas estejam apodrecendo e o coração pareça um grande coágulo a me arrematar...Como pode o meu amigo fazer da navegação estaca para furar-me o estomago e os olhos clamando por vida? Que fique claro, cristalino, chamei meu amigo como o cachorro que chama o dono com os olhos na estrada. 
Os animais sempre sabem quando são abandonados, os olhos tornam-se opacos e vazios. Deixo claro também que todos temos desequilíbrios e tentei até o fim buscar cura sem afundar quaisquer seres outros.  Desencantei da morte quando recebi a primeira carta do meu amigo. Ri de alaranjar os beiços e soltar os quadris. A segunda carta do meu amigo vinha no formato de um memorando, com muita diplomacia enfiando a lamina nas minhas entranhas. Perambulei pelas ruas em vertigens e sons. O cheiro é mesmo uma coisa maldita. Percebo carinho por esta palavra. O som da palavra é o que de mais fundo tocara a minha alma. Desesperei-me por curas fulgazes até que recebi outra carta. 
Meu amigo escrevia cartas demais porque na verdade não sabia agir. As palavras só sustentam os gozos. Li a carta e vislumbrei, meu amigo certamente voltaria. Mantive as xícaras enfileiradas, as listradas que comprei numa dessas lojas sem nome perto da nossa casa. Não eram anônimas, todos os que por aqui passaram sabiam de quem eram. Eram. Verbalizar dói. Resolvi responder então as cartas, resolvi crer que o meu amigo voltaria e que o naufrágio é para navegações defeituosas, no seu caso a navegação era uma fortaleza, eu ria por demais tomando vinho no convés enquanto meu amigo fumava um Camel. Quando fiquei em terra firme não pude mais acompanha-lo e embora ninguém fosse substituível, todas as companhias provocam uma sensação. Lancei uma carta desesperada ao meu amigo, pois a sobrevivência é filha da coragem e coragem tenho, mas tenho também o sangue quente e pressa de viver. Não obtive respostas.
 Muito demorou para que eu entendesse que o silencio é a resposta daqueles que não vão voltar porque, por debaixo dos panos, fazem tudo para nem ficar. Em quem irás despertar a pureza de juntar os queixos e olhar pro céu agora? Constato que felicidade tem prazo de validade e eu deveria ter decência em escrever sem arranhar a mesa. O atendente não há de notar os destroços que se alojaram aqui. Sou agora, mas só agora, um depósito de fotografias, Camel’s e golda matinal. Sou o depósito de todos os cadáveres alegres a quem respirei tanta alegria pelas ruas da cidade vazia. Só agora dou-me o direito ao declínio. Que o meu amigo aprenda com a morte das coisas lindas o que é a coragem de seguir quando o desejo é sincero. Agora vou me sentar e fumar este cigarro velho. 
Não se preocupem os amigos, me enojo de piedosos olhares. Sintam-se todos lisonjeados de compreender através do experimento vivo o que é deprimir-se na ausência de outrem, estou longe de incendiar as cartas do meu amigo e de saborear as lágrimas, que fiquem calmos e sigam o prumo. A cicatriz de pele fina é minha, estou lidando com o gosto dos desaparecimentos. Um a um, vão evaporando todas as imagens, é o que me dá raiva, uma raiva medonha. Almejo ter a capacidade do meu amigo de desembarcar em qualquer porto e logo embarcar em outro sem colecionar numa caixa de sapatos as coisinhas que doem mais. Preciso primeiro não bater em nenhuma quina. Tenho apenas um pedido, que se cansem de meus escritos, o coração do poeta só para de escrever sobre aquilo que lhe mata quando o coração experimenta o sublime outra vez ou quando todo o estalo de dor é inteiramente corroído.