O piano bateu. Foi assim que vi você saindo da barbearia
tirando os óculos atravessando a rua pra mim olhando pros cabelos de Júlia,
qualquer coisa negra brilhando às dez da manhã lembrando que a minha saia
estava suja e igual. A janela fechou. Foi assim
que vi você gesticulando qualquer assunto em comum com Laura lembrando que o
meu silêncio ecoa nas tuas falácias, porque elas não existem para mim que já
conheces. O ferrolho desceu. Foi assim
que Maria passou olhando de rabo de olho ajeitando a barra da saia deixando à
mostra seu quase seio de quase mulher e seu quase jeito firme de ser fincando de
pedra tua pupila; lembrando que não há mais nada de charme no meu cabelo
desbotado. A nuvem pesou. Foi assim que
Berenice atravessou a rua com aquela bundinha redonda balançando e hipnotizando
a nós dois e eu percebi tua fixação por três míseros segundos que se repetiram
quatro vezes enquanto ela passeava na confeitaria lembrando que a minha bunda
não balança e não tem formato, porque ela está ao seu lado ou atrás de você
quase sempre. A ficha caiu. Foi assim que Ariana puxou teus olhos quando jogava
sinuca no bar de Arnaldo que sempre perguntava o significado da minha tatuagem e eu em silêncio ria amarelo
lembrando que tu olhavas as tatuagens de Marte na nuca dela que te percebia só
porque fazias questão de passar ao lado dela. O barco dissolveu. Foi assim que Elisse
apareceu no cenário dos espíritos de véu lembrando que não há mais nenhum tipo
de graça em não ter explorado a América, em não ser do mundo, e que o conceito
de conhecimento adorável é artificial e não tenho tantas estórias para contar. O espelho embaçou. Foi assim que Olga dormiu e a tecnologia dos dedos permitiu
comunicação com o quase desconhecido lembrando que há um perigo bem sutil que de tão evidente não é suspeito. A garrafa
quebrou . Foi assim que vi você acompanhando solene o riso de Lívia só porque
ela tinha peitos grandes lembrando que eu também tinha mas eu não estava rindo,
porque talvez não fosse Lívia que estava rindo com Marcelo que beijou na orelha, porque
eu estava seca. A brisa ardeu. Foi assim
que senti uma enorme ânsia quando vi que
você colecionava os pôsters de Mila atrás da porta cinco anos depois de sua
morte lembrando que talvez eu precise partir. O trinco emperrou. Foi assim que
vi seus olhos penetrando na blusa de renda de Rosa procurando algo que acabei
lembrando que eu tinha mas troquei de blusa antes de sair para não parecer
vulgar, no engano de sempre manter os meus olhos bem distantes dos teus quando
estamos em bando, pois não sabes de modo algum disfarçar. O chão
se abriu. Foi assim que percebi que estava sem mãos pra chamar quem habitava agora em
teu corpo lembrando que meu corpo já estava boiando em alto mar chegando não
sei onde, porque já desistiu de nadar. O
mar chorou. Foi assim que Rúbia existiu e tirou o peso dos verbos. O silêncio ecoou. Foi assim que ouvi Íris falando do céu lembrando que eu era amante da natureza mas falava quase nada porque eu estava limitada a ser e desafiava o teu encanto pelo parecer. A roupa mudou. Foi assim que vi que prestavas atenção nas gurias de pescoço e lábio finos lembrando que eu havia passado batom pros semáforos. A
cama esvaziou. Foi assim que dormimos juntos pela quinquagésima sexta vez no claro da televisão lembrando que quem ama
dorme todos os dias da semana, mas só depois. O carnaval chegou. Foi assim que eu vi a tontura tomar de conta de um ser que não sabe o que procura e na hibridez do luto perde-se do que o cura lembrando que eu era bonita, mas não estava pintada de paraíso bélico , nem nua chamando a língua pra cintura. O passo não se estendeu. O sopro
da existência divina apareceu lembrando que verbalizar é a arte de quem ainda
não morreu.
Quem sou eu
- Tarciana Ribeiro
- A escrita sempre foi fiel. Os episódios aqui encontrados são batizados de Escarros pois os mesmos são expurgos íntimos e partos divinos diferencialmente temperados pelos versos e circunstâncias que os compõem. Muitas vezes escorrem coisas a todo o tempo sem controle, disso tiro a lição e arte que se eterniza, mesmo que a poucos olhos. O valor é da existência. -Se fosse objeto seria polaroid, cuspiria poesia.
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